segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Conto: A Fantasia do Lobo

Só posso imaginar que, essa cidade está infestada de sombras de pessoas, corpos preenchidos por lobos, e você não pode confiar em ninguém, ninguém mesmo.
Pode ser que... Esteja conversando com um monstro.
E seu amor? Ah, seu amor! Pode estar morto





A Fantasia do Lobo
Marie Soffiati


 Era inicio de setembro, e eu já havia esgotado minha paciência com meu chefe no trabalho. Parecia mesmo que ele tinha uma certa aversão por mim, mas eu, dependente do salário que ganhava nada podia fazer.

Depois de um dia cansativo voltei para casa, Kieran estava preparando o jantar. Observei da porta a forma como cozinhava, como um musicista faz sua música, havia arte em cada movimento. Realmente amava a forma como seus músculos ficavam com aquela blusa azul. Ele cantava e picava as coisas com elegância, o pequeno rádio tocando sua seleção de músicas favoritas.

- Olá, passarinho. - abracei-o e fiquei ao seu lado observando-o.

- Como está hoje?

- Quase morta de cansaço mas viva. - sorri.

Ele me beijou fazendo cócegas na minha cintura.

- Que tal ir descansar enquanto termino esse prato que estou testando? Considero impossível me concentrar em cozinhar com minha pequena Shew sorrindo dessa forma maravilhosa.

- Hm, vou tomar um banho e volto logo. É tão estressante lidar com o pessoal do trabalho. Isso me faz entender porque você preferiu trabalhar em casa com essas coisas que mais fazem você parecer um hacker do que um empresário.

- Se quiser pode fazer parte de um trabalho nesse estilo.

- O pior de tudo, é que preciso ter contato com pessoas e movimentação. Mesmo que esteja com dor de cabeça no fim do dia.

- Essa é você.

Ele sorriu, todos seus dentes branquíssimos a mostra. Aqueles dentes me perturbaram em sua perfeição cegamente branca. Nunca havia notado que eles eram tão retilíneos que poderiam ter sido lixados, se livrando de pontas afiadas.

- Hm.. Seus dentes são tão brancos, Kieran.

- São para espelhar sua beleza...

Observei seus olhos castanho esverdeados e sua barba por fazer, havia um certo encanto em o observar. Havia muita beleza, um toque incrível de perfume do campo. Oh sim. Olhos de floresta, perfume de campo. Dentes tão brancos... Poderíamos correr juntos por aí, notei. Nunca havia notado o quanto da natureza selvagem havia nele. Podia sentir. Cada parte dele, se revelando. Gargalhei, mas interiormente estava com medo. Novamente aquelas coisas que sempre chegavam e mexiam comigo.

- Você é um lobo, Kieran?

- Oi? - ele gargalhou. - Por que seria, Shew?

- Você me parece um lobo. ''São para espelhar sua beleza''.. Você sabe que isso parece saído de Chapeuzinho Vermelho. E você sabe como sou, passarinho.

- Estava apenas brincando, Shew.. - ele riu balançando a cabeça.

- Bom, vou tomar meu banho, é melhor assim. Logo virão coisas e você sabe.

- Fique bem, meu anjo. Qualquer coisa me chame.

Olhei no armário de inox e vi a imagem dele refletida. Ao invés de um homem havia um lobo com uma faca na mão. Algo me dizia que ele não era meu marido, era outra coisa que havia tomado sua forma. Uma mesma aparência, um reflexo diferente.

Olhei no fundo dos seus olhos. Eram os mesmos de sempre, mas ele não estava ali. Não meu Kieran, o outro exalava a própria floresta em seus olhos verdes.

-Está bem? - ele disse.

Balancei a cabeça livrando-me daqueles pensamentos.

- Bom, estou sim.

Fui até o meu quarto, arrumei minhas roupas e fui tomar banho. Tranquei a porta e abri o chuveiro. Sob ele eu revia os dentes e os olhos que pareciam abismos vazios. Aquele não era Kieran. Não era o meu Kieran. Com quem vivi os meus melhores momentos, quem conhecia os meus mais profundos pensamentos. Não era ele, não podia ser. Meu Kieran exalava a cidade e seus sons, era a modernidade, as coisas casuais e as marcas de muitas eras contidas nas coisas. Meu Kieran, não gostava do seu sorriso embora fosse perfeito. Mas acima de tudo, os olhos do meu Kieran eram a janela para a mais bela alma de todas. E seu reflexo, nunca foi um lobo.

Em minha mente tentava entender o que aquele outro era. Ah, ele parecia gentil. Mas porque havia tomado meu Kieran? Meu marido estava possuído? Ah, os olhos... Não, não, acho que não. Os olhos do outro pareciam ser formados da própria floresta, poderia ele ser, como um ghoul? Se alimentando de meu Kieran e tomando sua forma e suas lembranças.

Isso me parece plausível. Ele poderia sim ser um ghoul, e ele poderia sim revelar sua real forma como um lobo. Quem viu um ghoul para poder dizer qual forma ele tem? Como ele se mostra na realidade? Uma cópia de suas vítimas, um reflexo grotesco. É o que dizem. Talvez seja, realmente.

Bati minhas mãos na parede gelada fracamente, encostei minha testa na parede e respirei fundo. Contei até algum número para que a calma viesse. Para que me lembrasse, como poderia sair dessa. Para que a resposta viesse do fundo da minha alma.

Me sentei no tapete e deixei a água escorrer pelos meus cabelos, puxei minhas pernas para junto a mim e me balancei.

Platão disse que ''aprender é recordar''.

Jesus disse: '' O Reino de Deus está dentro de nós mesmos.''

Poderia encontrar dentro de mim as respostas.

Conseguia ver na parede imagens a zombar de mim. Muitas imagens, criaturas sombrias ou seres coloridos demais.

- Saiam... - murmurei. - Encontrarei a resposta sozinha.

Fechei os olhos para que não me importunassem, para pensar em paz. Figuras passavam por baixo de minhas pálpebras ainda assim.

-Shew? Está tudo bem? - ele bateu na porta, sua voz bem parecida comum urro. - Shew? Você está aí já faz uma hora. Aconteceu alguma coisa?

-Shew? - ele disse novamente. Me lembrei do lobo. Sua voz suave e preocupada não a apagariam da minha mente. - Vou abrir a porta.

Ele batia as patas na porta, e bufava e bufava.

''Vou soprar e soprar até sua casa desabar.''

-Não! - gritei. -Não!

-Shew por favor, me diga o que está acontecendo.

Balancei a cabeça.

Soprar,soprar. Ele era um lobo sob a pele do meu marido. Era um disfarce. Um lobo na minha casa, invadiu meu Kieran, o sequestrou e se fantasiou. Meu Kieran estava gritando preso em algum lugar frio, ou quem sabe, já morto por esse odiável invasor.

-Kieran. - disse baixinho. - Quero meu Kieran.

A chave girava na fechadura. O lobo estava entrando, coloquei a cabeça sobre os braços.

O lobo desligou o chuveiro e colocou as patas em meu rosto, o segurando.

-Shew, o que está acontecendo?

Permaneci calada, não conversaria com o impostor.

-Shew... Me diga alguma coisa. - o lobo chorou. - Meu anjo, se levante. Há algo errado? Suas visões voltaram? Shew!

Ele estava berrando com sua voz gutural. Os olhos de Kieran, não eram dele. Haviam garras e dentes pontiagudos. Ele me ergueu e me puxou para seu corpo. Meu corpo molhado se juntava ao dele. Me desvencilhei e olhei no fundo dos seus olhos.

-Você esteve sempre aqui?

-Sempre estarei contigo, anjo. Achei que os remédios estavam funcionando, deveriam estar. Temos que ir ao médico, vou ligar para ele. Que tal se vestir?

Ele pegou minha toalha e me entregou, ficou me observando com água caindo por sua face. Tão falso. Ele era um lobo, ele havia matado Kieran e tomado sua pele.

-Aqui suas roupas.

Me vesti alerta a ele. Ele me abraçou, pediu que me sentasse e penteou meus cabelos. Fiquei em silencio me encarando no espelho. No espelho ele revelava sua verdadeira face. Novamente lobo, penteando meu cabelo. Olhei para suas mãos lisas, depois as patas no espelho. Comecei a chorar.

-Shew?

-Você não é ele. Não é.

Ele caminhou até a sala e ligou para o médico. Eu sabia. Ele queria me levar embora.

Caminhei até o nosso quarto, abri a última gaveta do guarda-roupas, retirei a caixa e dela o revólver que compramos para que fosse nossa defesa. Nunca pensei que o usaria agora.Usaria contra uma casca de meu amor.

Caminhei para a sala, ele discutia algo no telefone. Não ouviu meus passos, ou minha presença, apontei o revólver para o meio de suas costas e antes que me olhasse já havia disparado. Ele caiu no chão, olhou nos meus olhos e perguntou:

- Por que está fazendo isso, Shew?

- Lobos devem morrer, antes que matem alguém.

Atiro em seu peito, e novamente. Não sinto qualquer coisa por aquilo que havia o tomado, pois não era meu marido, era um invasor. Pego uma bolsa e guardo o revólver nela, coloco meu moletom e meus jeans. Logo o médico virá e talvez ele também, não seja exatamente nada do que pensei um dia ser.

O lobo está caído na sala, as lágrimas estão me molhando e estou indo procurar meu marido. Ele não está na casa, mas está dentro de mim, posso senti-lo vivo em algum lugar, desejando que o salve.

Alcanço a rua a procura dele.Mas só vejo lobos, só posso ver lobos. Os mesmos seres sem nada no olhar, com simples cascas preenchidas por almas felinas.

Onde eles esconderam meu amor?

Será que um dia irei encontrá-lo?

Por que não param de urrar?

Corro pelas ruas, esbarro em criaturas e tudo que fazem é urrar.

Só posso imaginar que, essa cidade está infestada de sombras de pessoas, corpos preenchidos por lobos, e você não pode confiar em ninguém, ninguém mesmo.

Pode ser que... Esteja conversando com um monstro.

E seu amor? Ah, seu amor! Pode estar morto.

Morto...

Como o meu pode estar.


Conto também disponível no Wattpad: https://www.wattpad.com/story/94563243-a-fantasia-do-lobo

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